Visitei há alguns anos a casa do poeta Pablo Neruda em Isla Negra no Chile. É uma casa espaçosa na medida certa. De cara se vê que foi feita para acolher o poeta e seus amores. Amor pelas peças que acumulou ao longo da vida de embaixador, amor pela mulher com a qual compartilhava um quarto envidraçado e uma cama que quase flutua (agora no museu) sobre o Pacífico, ao sul de Santiago.
Pablo Neruda era fascinado pelo mar, apesar de evita-lo. Sofria de enjôo ao navegar. Mas era um espectador atento do espetáculo diário de suas marés. Numa manhã chuvosa ele observou que algo era, pouco a pouco, trazido pelas ondas em direção à praia. Ajustou seu binóculo e viu que aquela mancha escura nada mais era que uma grande prancha de madeira. Comentou o poeta com sua amada: “minha escrivaninha está chegando”.
Alguns anos depois e mais próximo ao Atlântico, passeava eu pelo bairro do Campo Belo, em São Paulo, acompanhado de meu cachorro Toy quando percebi uma daquelas figuras típicas de nossa cidade: um homem, uma carrocinha e muita coisa para arrastar rua acima.
Assim como Neruda (desculpe esse pecado, Pablo), vi que chegava lentamente em minha direção, dependurada na carroça, uma cabeceira de cama patente. Isso mesmo, aquela criada em Araraquara no inicio do século 20 por um espanhol e patenteada com sucesso absoluto por um italiano. Roubo? Não sei dizer. Só sei que aquela cabeceira pendurada me fez parafrasear o poeta: ‘meu cabide está chegando’.
Transformação
Claro, nada se compara à poesia de ver o mar trazendo sua escrivaninha, mas eu, camarão do asfalto acostumado a “comer” os lixos da cidade, fiquei encantado com a possibilidade da velha cabeceira ser transformada em cabide para as muitas bolsas e chaves na entrada da nossa casa.
Bastou mudar os ganchos de lugar, fazer uma boa pintura, em amarelo ensolarado e encaixar um espelho para forrar a madeira central. A cama foi para a parede, quase 100 anos depois, com sucesso absoluto do público lá de casa – mulher e 3 filhas.
– Nossa, esqueci o Batom!
– Preciso cortar o cabelo!
– Será que mudo os brincos?
– Estou bem?
Não sou poeta das letras, mas faço poesia à minha maneira, inspirado, como Neruda pelas mulheres que amo. “Afinal amor é feito espelho: tem que ter reflexo” (*).
(*) Pablo Neruda
Décio Navarro, designer de interiores e colunista Arquitecasa